Especialista e Aprendiz

terça-feira, 26 de janeiro de 2010


Nenhum aprendiz é especialista, pelo menos até que se torne especialista, quando então deixa de ser aprendiz. O aprendiz que se acha especialista provavelmente jamais deixará de ser aprendiz. Já, todo especialista precisa aprender a ser aprendiz.

O parágrafo é propositalmente provocativo e reflexivo. Não venham com ilações que conduzam, por exemplo, à lembrança de que um especialista ou suposto especialista em assessoria tributária seja apenas um aprendiz desastrado em jornalismo. Até que a sugestão é pertinente, mas não foi esse caso que me moveu a preparar este texto. Foram outras situações, muito mais importantes.

Sugiro que o conceito de aprendiz e de especialista não seja desdenhado, porque na maioria dos casos os especialistas, por mais especialistas que sejam, caem do cavalo quando transpõem a especialidade a campos nos quais deveriam se comportar como diligentes aprendizes.

Querem um exemplo que não seja deliberadamente provocativo como o anterior para que se retire de vez o conceito do terreno da filosofia?

Imagine um cardiologista respeitadíssimo, que frequenta ambientes internacionais, palestrista de primeira linha, uma sumidade no assunto.

Esse especialista é aprendiz em tantas outras coisas que se não se der conta disso vai sentir na pele, na alma e também no bolso o quanto lhe custará a transposição automática. De excelência profissional será observado como estorvo em relações que poderiam ser construtivas e acabam antagônicas.

Quantos não são os casos de especialistas dos gramados de futebol, gente que fez a torcida delirar, que ganhou títulos diversos, que balançou redes com frequência, que fez defesas espetaculares, que lançou atacantes com passes mágicos, mas que, fora dos campos, nos negócios, na família, na relação com amigos, foram aprendizes incontroláveis?

Entre Pelé e Edson Arantes do Nascimento, por exemplo, há um abismo. Exigir de Edson a genialidade de Pelé é um convite à decepção.

Um Antonio Ermírio de Morais que se metesse a marcar gols seria patético.

Mas nem sempre conseguimos distinguir o Pelé e o Antonio Ermírio que acreditamos ser em nossas especialidades do Pelé e do Antonio Ermírio fora das respectivas especialidades.

Há, guardadas as devidas proporções, muitos Pelés e muitos Antonios Ermírios na praça, cujos amigos mais próximos poderiam, fossem honestos nos relacionamentos, alertar para os riscos de passarem de especialistas a incorrigíveis aprendizes. Como não se manifestam, como se omitem, acabam colaborando para o caos.

Tenho enorme preocupação em não sair de minha especialidade sem o respaldo de especialistas em outras áreas, com os quais me comportarei humildemente como aprendiz. O melhor dos especialistas é aquele que procura expandir o raio de atuação em funções assemelhadas nas quais não tem o domínio técnico integral, mas pode, sem tropeções, sustentar a coordenação e a integração.

Foi assim que concebi a Teoria da Produtividade Editorial, assunto do qual me ocuparei qualquer dia neste site, além de recuperar os textos que preparei sobre o assunto desde o lançamento dessa semente de multifuncionalidade compartilhada.

Quem de nós já não quebrou a cara porque imaginou que a especialidade que assegura uma condição de vida melhor poderia ser exercitada sem problemas em outras áreas?

Não faltam na praça oradores de peso que convencem platéias, que seduzem clientes e fornecedores, mas que, colocados na parede de relações pessoais, dessas que não admitem subterfúgios, dessas que exigem transparência, dessas que condenam manipulações, se dão mal para burro.

Especialista em qualquer coisa que se preze não pode perder jamais a capacidade de reconhecer-se aprendiz em tantas outras atividades, mas quem está acostumado a comandar com base na especialidade acumulada encontra enormes dificuldades de aceitar aprendizagem em outros terrenos.

Um executivo que decide por milhões de investimentos de uma companhia transforma-se em aprendiz diante de um engraxate, porque ali, sentado, deve mesmo se submeter a quem é do ramo. Quem de nós é capaz de cumprir tão bem o trabalho de um especialista em engraxar sapatos que se dá ao luxo, ao final da tarefa, de batucar um samba dos bons com aquela flanela abusadamente rítmica?

O aprendizado do especialista que pretende incorporar novos conhecimentos, principalmente em atividades afins, é um aprendizado menos demorado e extenuante do que o aprendizado da especialidade inicial, mas há um cronograma naturalmente imposto para que deixe de ser um principiante apenas.

Entretanto, o especialista que se transforma em aprendiz em atividade sem qualquer relação direta com a especialidade na qual se consolidou não pode perder jamais a perspectiva de que provavelmente começará do zero.

Especialista inteligente é aquele que procura diariamente acumular novos conhecimentos em áreas afins, expandindo o raio de atuação senão com a mesma tonicidade técnica pelo menos num ponto de aderência que reduza o impacto da aprendizagem convencional.

Especialista inteligente é aquele que procura nas eventualidades de aprendizado de algo sobre o qual não tem nenhuma intimidade comportar-se com dedicação e empenho dos iniciantes que se tornaram especialistas.

O grande nó na sociedade dos incluídos é que especialistas se acham sempre especialistas sejam quais forem os ambientes em que vivem e as funções que venham a exercer. Demora para cair a ficha de que por mais que sejam admirados pela especialidade que dominam, por mais que possam dominar todas as atenções como fruto da dedicação ao longo dos anos, serão simples aprendizes na maioria dos casos em que se despem da especialidade individual.

As pressões econômicas exigem que os especialistas em quaisquer que sejam as especialidades sejam mais e mais competentes, mas não lhes conferem em nenhuma circunstância o dom da sapiência ampla.

Algo semelhante à divisão de responsabilidades numa equipe de futebol, onde goleiro metido a centroavante só dará vexame, e centroavante metido nos trajes de goleiro sofrerá muitos frangos. A divisão de tarefas das equipes é emblemática do distributivismo das atividades na sociedade.

Vai se dar mal ou terá tudo para se dar mal quem quiser sair do terraço da especialidade específica e se jogar na piscina da multifuncionalidade arbitrária. Correrá o risco de morrer afogado nas águas da improvisação.

Fonte: http://www.capitalsocial.com.br

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